Histórias de Oficialas de Justiça – Cerise de Mattos Gomes
Dilemas existenciais na profissão de uma Oficiala de Justiça
Cerise de Mattos Gomes
Oficiala de Justiça – Comarca de Porto Alegre
Ser Oficial de Justiça é estar em constante contato com diversas situações inusitadas, nosso cotidiano é permeado de incertezas, curiosidades, absurdos. Oficial de Justiça é a mão da justiça em ação, tornando real uma expectativa de direito, quase a perfectibilização do ideal de justiça, não fossem os humanos os grandes protagonistas das tramas e confrontos judiciais.
Certa feita recebi uma ordem judicial inabitual. Deveria me dirigir a um específico Hospital e intimar a administração do hospital e parentes de uma paciente, que lá se encontrava internada em estado gravíssimo, necessitando de uma transfusão de sangue. Ao ler, pensei: “Como assim? Se a pessoa está morrendo, como se recusa a fazer transfusão de sangue? Ora, amarra e faz”. Ingenuidade a minha, que em segundos se dissipou, pois lembrei que existem as Testemunhas de Jeová, para as quais um preceito básico é a proibição de receber ou doar sangue. A título de curiosidade, segue parte da localização dos fundamentos, os quais encontrei em pesquisa básica no oráculo: Em “Gênesis 9:4”, em “Levítico 17:14”, em “Atos 15:20”.
A medida mostrava-se, em princípio, de fácil resolução não fossem os humanos envolvidos. Confesso que temas relacionados à religião são caros a esta Oficiala, crenças, dogmas, causam-me um incômodo sem tamanho. Na particularidade de minhas investigações filosóficas sobre religião o conflito é sempre uma constante. Naquele momento pensei: puxa vida, poderia ter saído para outro colega este plantão.
Mas a vida de Oficiala de Justiça, como disse ao início, é rica em inesperados. Cada mandado uma história, então para o hospital me dirigi. Não conseguia organizar na minha mente a situação, procurei não pensar, apenas me imbuí da robocidade, que muitas vezes é extremamente necessária para a nossa saúde mental, e fui.
Ao chegar ao hospital, respirei por três vezes antes de adentrar, pois assim sempre faço em diligências nas quais a minha intuição já prevê o caos. Solicitei o contato com a pessoa responsável pela administração do estabelecimento hospitalar e, nas formas da Lei, dei por cumprida a primeira parte da medida. Por óbvio, tudo correu na calmaria, pois a medida já havia sido pleiteada pelo próprio hospital, quando da comunicação ao Ministério Público sobre a gravidade da enferma, e a recusa por parte do marido em autorizar a transfusão de sangue. No ato, essa Oficiala foi alertada de que não seria bem recebida, tanto pela paciente, que estava lúcida, apesar da enfermidade, quanto por seus parentes.
Enfim, seguimos pelos brancos corredores do hospital, mas branco estava meu pensamento, seguindo passo a passo, meu coração apertando, pensando por que eu, mas ao mesmo tempo pensei, por que não eu? Ao chegar ao quarto, batimentos acelerados, a autodefesa a milhão, a respiração ofegante. Alguém há de pensar: “Uai, mas não é Oficiala de Justiça há tantos anos, e onde está o raio da experiência”? Respondo ao nobre interlocutor, sim, a experiência vem com o tempo, mas somos humanos, e essa questão em tela, especificamente a religiosidade e seus disparates, fazem parte da minha busca evolutiva (se é que podemos falar em evolução do humano).
Então, minha imparcialidade estava à prova. Entro no quarto, me identifico, identifico a parte principal, deitada na cama, e, em ato contínuo, identifico o marido da paciente, digo a que vim, despejo a determinação judicial, leio todo o teor do mandado, dou as partes por cientes, a bagunça está feita. Sou o diabo em pessoa, aos gritos; o marido, e demais parentes na sala, não me acusavam tão somente de causar a desgraça na vida de todos, mas sim, afirmaram ser eu o diabo em pessoa (confesso que me senti honrada), despejaram os piores impropérios possíveis, ficaram revoltados. Sendo eu uma Oficiala de Justiça competente, não poderia apenas virar as costas e dizer, se virem, a transfusão será realizada, queiram ou não queiram, então me dediquei a conversar para tentar acalmar os ânimos (missão impossível), mas a raiva destilada a minha pessoa, por fim se transmutou em desespero da paciente e seus familiares. A paciente disse, afirmou, pediu, implorou pela morte no lugar da transfusão. Fiquei chocada, tamanha convicção. Pedi desculpas, mesmo não sabendo por qual razão, mas de lá para cá, meus incômodos filosóficos religiosos se agravaram.
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