HISTÓRIAS DE OFICIALAS DE JUSTIÇA – Fabiane Dutra Becker

Legalidade, Justiça e Emoções!

Oficiala de Justiça – Comarca de Restinga Seca

A rotina de Oficial de Justiça está pautada em dar cumprimento e efetividade às decisões judiciais, entretanto, sabemos estar cumprindo uma ordem legal, mas o dilema está em se sempre é justa. Era inverno, agora não me ocorrem as datas, numa sexta-feira, final de expediente, acionada pelo plantão para cumprimento de ordem de busca e abrigamento de menor.

Tratava-se de uma menina de 07 anos, com notícia de ser vítima de abuso, onde os fatos narrados citavam a existência de um bar no local. Já de posse do mandado, o assessor da Magistrada informou que, caso achasse pertinente, poderia cumprir no dia seguinte, mas daí pensei: os fatos envolvem um bar, estabelecimentos esses, cujo movimento é maior nos finais de semana, então, não tive dúvida, o cumprimento seria naquele dia, pois, caso algo mais grave acontecesse com aquela menina naquela noite, não poderia ter minha consciência tranquila.

Brigada Militar e Conselho Tutelar acionados para apoio e acompanhamento, deslocamento até o município jurisdicionado, distante, aproximadamente, 30km, seguimos, naquele dia úmido, garoa fina e já tomado pela escuridão da noite, rumo ao local da diligência, enfrentando estrada de chão em condições precárias, cheia de curvas e morro acima. Rodando mais uns 15km, percurso esse que busquei pedir auxílio superior, para proteção dos envolvidos e tranquilidade para efetivar um cumprimento delicado, de retirar uma criança do lar para levá-la ao abrigo.

Na chegada nos deparamos com a presença de, aproximadamente, 20 homens, frequentadores do referido bar, momento tenso, pois era eu, a Conselheira Tutelar e dois Policiais Militares, e o medo de que pudesse haver uma resistência em massa, mas o objetivo era maior que isso, retirar uma criança em suposto risco. Desci do carro, portando mandado e caneta, e anunciando em voz alta “Oficial de Justiça em cumprimento de ordem judicial”, tendo os olhares de todos voltados para mim, enquanto ingressava na moradia de apenas um cômodo, demonstrando a realidade econômica precária daquela família, onde estava a menina, o irmão menor e a genitora.

Informando a ordem judicial a ser cumprida, a menina se agarrou ao pescoço da mãe e pediu, não deixe me levar, instante em que surge o dilema acima referido: ordem legal x justiça. Tal pensamento se dissipou no momento do ingresso do genitor no imóvel, o qual estava no bar, que ficava há poucos metros da casa. Estava com sinais de embriaguez, perguntou com voz alterada o que estava acontecendo, fazendo com que aquela mulher humilde olhasse para ele dizendo: “você não se endireita”, frase essa que me ligou o alerta: “os fatos que embasaram a decisão têm fundamento”.

Logo que ingressou, e após o comentário da esposa, o genitor veio em minha direção, batendo em meus braços com o dorso da mão, pedindo os “papéis”, tendo os policiais militares já se preparado para agir, quando, tomada de uma tranquilidade, a qual achei que nunca teria, fiz sinal para que aguardassem e, olhando firme para o homem, disse para ele me respeitar, que estava em cumprimento de ordem judicial e entregaria os documentos no momento oportuno. Ouvi uma voz vinda do pátio, onde se encontravam os frequentadores do bar: “deixa levar, depois você resolve”, e eu em pensamento: “graças a Deus”.

Resolvido o impasse com o genitor, agora tinha de, da forma menos traumática possível, retirar a menina do local, a qual ainda estava agarrada ao pescoço da mãe. Nessa hora temos que ser um pouco de “tudo”, menos um simples cumpridor de ordem judicial ou entregador de papel, como muitas pessoas nos enxergam.

Então, como a menina estava assustada e pedia para a mãe não deixar levá-la, conversei com a genitora e informei ter que levar de qualquer forma e não queria retirar “à força” do seu colo, e que ela usasse o amor pela filha para me ajudar, instante em que ganhei a confiança da mãe, a qual começou a conversar com a menina, dizendo que ela tinha que ir, convencendo-a a seguir conosco.

Então, a menina largou o pescoço da mãe, a Conselheira Tutelar a pegou, dizendo poder levar o brinquedo que quisesse e reforçando os lados bons do local para onde ela iria, momento em que o irmão menor olhou para mim e perguntou: “tia, você não vai me levar também?”.

Tendo respondido negativamente, se virou para a irmã e a abraçou, numa demonstração de carinho entre dois irmãos, ainda de tão tenra idade, que nunca saiu da minha cabeça. Diligência encerrada e dever cumprido, tudo marcado de sentimentos diversos, os quais marcam e cruzam nossa jornada profissional todos os dias.

 


Esse texto faz parte da campanha da ABOJERIS “Histórias de Oficialas de Justiça”. Para contar sua história e conhecer todas as demais, clique em no link abaixo. Compartilhe essa ideia e envie sua história!

HISTÓRIAS DE OFICIALAS DE JUSTIÇA

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