ARTIGO – Apedido
A violência cotidiana e os Oficiais de Justiça: com emoção tá liberado?
“Bem sei que ninguém estima um mensageiro de más notícias.” Antígona, Sófocles ( 442 a.C.)
Um dos maiores problemas da sociedade contemporânea é a passividade com que a população consome as informações recebidas dos meios de comunicação. Ainda é atual a imagem das pessoas em casa, após um duro dia de trabalho, assistindo ao noticiário da televisão, recebendo as notícias de forma totalmente passiva e interagindo apenas com o “boa noite” do apresentador do telejornal.
Como não seria diferente, os Oficiais de Justiça, muitas vezes oprimidos pela invencível carga de trabalho, frequentemente se deixam levar por tal comportamento. Preocupados com quantidade de mandados, que em algumas comarcas ultrapassa 300 mandados mensais, o que exige, no mínimo, 500 diligências, muitas vezes deixamos passar sem a devida atenção notícias que aparentam não ter nenhuma relação com o nosso cotidiano. Ocorre que tais notícias seguidamente tratam de decisões governamentais que impactam diretamente o nosso trabalho e nosso dia-a-dia.
Cito dois exemplos. Primeiro, o Decreto nº 9.685/2019, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento. Intimamente ligado a esse decreto está o segundo caso, que é o Projeto de Lei que está para ser apresentado ao Congresso Nacional, apelidado de “Anticrime”. Especificamente desse último projeto, e nos limites deste artigo, nos interessa a mudança proposta ao artigo 23 do Código Penal, que trata da legítima defesa.
O atual texto do referido artigo 23 estabelece que não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legitima defesa e em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito. Por sua vez, o parágrafo único do artigo determina que o agente responderá pelo excesso doloso ou culposo. Já a proposta apresentada inclui no parágrafo único a hipótese de que o juiz poderá reduzir a pena à metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção(fonte: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://justica.gov.br/news/collectiv e-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime-mjsp.pdf, consultado em 10/02/2019).
Tal modificação tem sido vista pela maioria dos críticos como uma espécie de “licença para matar”, dirigida especificamente a policiais e agentes de segurança do Estado (fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/02/o-pacote-anticrime-do-ministro-sergio-moro-deveser-aprovado-pelo-congresso-nao.shtml, consultado em 10/02/2019). Não discutiremos aqui a quebra de paradigma que tal mudança traz quanto ao trabalho da polícia, na medida que, implicitamente, passa a admitir que policiais possam sentir medo, sejam surpreendidos e que possam agir sob violenta emoção. No nosso sentir, bons policiais são corajosos, pois controlam o medo, não aceitam ser pegos de surpresa, o que demonstra planejamento e antecipação da ação, tampouco agem sob violenta emoção, mas no estrito cumprimento da técnica policial. O problema dessa crítica é não perceber que, da forma como a alteração legislativa está proposta, qualquer pessoa pode alegar as tais “excludentes de ilicitude”. E isso fica ainda mais grave no momento em que a posse de armas se torna possível a qualquer indivíduo com mais de 25 anos de idade que resida em área urbana com elevado nível de violência, sem antecedentes e, caso resida com criança, adolescente ou pessoa portadora de deficiência, tenha um cofre. Não é preciso muito esforço para constatar que a facilitação da posse de armas e as alterações propostas para a legítima defesa, caso aprovadas, criarão o ambiente perfeito para o exercício arbitrário das próprias razões, cujo reflexo no trabalho dos Oficiais de Justiça não demorará a aparecer.
A experiência demonstra que em nosso trabalho estamos expostos a riscos permanentes. A inexplicável decisão do Supremo Tribunal Federal em não reconhecer o direito dos Oficiais de Justiça ao adicional de risco de vida sob alegação de que trabalhamos sob risco “apenas eventual” é a demonstração definitiva de que a sociedade não tem conhecimento das dificuldades que enfrentamos no nosso dia-a-dia. O tom desrespeitoso com que os Ministros se referiram ao nosso trabalho naquela sessão do Plenário do STF foi sintomático (fonte: http://www.sinjufego.org.br/noticia/stf-nao-respeita-a-dor-da-familia-do-oficial-assassinado, consultado em 10/02/2019).
Agora, imaginemos um caso singelo: durante um plantão judiciário, numa comarca do Interior do Rio Grande do Sul, num fundo de campo, tenhamos que cumprir uma medida protetiva da Lei Maria da Penha e, após a leitura do mandado, o réu, que até então não havia criado nenhum embaraço ao cumprimento da ordem judicial, resolva inverter a situação e, de posse de sua arma, atire no Oficial de Justiça e depois declare que “agiu sob violenta emoção”, já que não queria ser obrigado a sair de casa nem se afastar da mulher que amava. Mudando o cenário, imaginemos um Oficial de Justiça em Porto Alegre, num bairro de classe média alta, em cumprimento a um mandado de Busca e Apreensão. O réu é um empresário conhecido na cidade, boa praça, cidadão de bem, frequentador das colunas sociais, habituée dos cafés e bares da Calçada da Fama, mas devedor de várias parcelas do financiamento da sua camionete BMW top de linha, e que, ao atender o Oficial de Justiça, use sua arma contra o Servidor( já que todo cidadão de bem poderá ter arma em sua residência) e depois alegue que agiu assim por medo de estar sendo vítima de assalto, pois o Oficial de Justiça não teria se identificado de forma satisfatória. São apenas dois exemplos, mas que podem ser adaptados para qualquer comarca do Estado e que servem para ilustrar o risco que tais alterações legislativas, caso aprovadas, trarão ao nosso trabalho.
Ao mesmo tempo, não se diga que estaremos protegidos pela lei e “pelo Direito”. Todos sabemos que apesar de sermos legalmente classificados como “auxiliares da justiça”, muitas vezes somos vistos como “coisas a serem suportadas”. Não é à toa que basta qualquer reclamação, mesmo claramente infundadas, para que tenhamos que responder a procedimentos administrativos, muitas vezes movidos com a intenção de provocar desgaste e com o objetivo claro de “enquadrar” o Oficial de Justiça. A experiência demonstra que frequentemente, mesmo não havendo prova irrefutável de irregularidade, somos punidos: na dúvida, puna-se o Oficial de Justiça. Ou pior: puna-se o meirinho!
Convém referir que muitas vezes os próprios órgãos de segurança tratam nossas demandas com descaso, insistindo em menosprezar os riscos que enfrentamos. Cito como exemplo recente caso ocorrido na comarca de Guaporé, em que, não fosse a atuação firme da ABOJERIS, um caso de coação no curso do processo seria tratado como mera ameaça e se resolveria em cestas básicas, em evidente desconsideração à dificuldade enfrentada pela Oficial de Justiça no cumprimento daquele mandado (fonte: http://abojeris.com.br/Noticias/Abojeris-presta-apoio-a-Oficialade-Justica-vitima-de-ameaca/976, consultado em 10/02/2018).
Não custa lembrar que o nome da rua em que está localizado o Foro Central de Porto Alegre é uma homenagem ao Oficial de Justiça Márcio Luiz Veras Vidor, baleado durante o cumprimento de um mandado de despejo. No momento da prisão, o homicida declarou “Eu não atirei nele, atirei no sistema” ( reportagem publicada no jornal Zero Hora de 11 de junho de 1999, conforme http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:5fe_CW1LLUMJ:www.camara.gov.br/proposi coesWeb/prop_mostrarintegra%3Bjsessionid%3DFE85E584DBFCD205FA102D0B1D87FD03.node2%3Fco dteor%3D345656%26filename%3DEMC%2B19/2005%2BCTASP%2B%253D%253E%2BPL%2B5845/2005+ &cd=4&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br ). Também lembremos do colega Juarez Pretto, Oficial de Justiça da Infância e Juventude da Comarca de Caxias do Sul, mortalmente ferido por um tiro no pescoço enquanto cumpria seus mandados. O momento é grave, perigoso, e nem mesmo o tão sonhado “porte de arma funcional para o Oficial de Justiça” nos livrará das ameaças e dificuldades que se avizinham.
Por tudo isso, fica o alerta para que não nos deixemos impressionar pelo que é divulgado de forma muitas vezes irrefletida pela imprensa e pelos ocupantes dos cargos de governo. As causas da violência são muito complexas. O crime é fato social inevitável, cujas soluções estão longe de qualquer fórmula mágica. Armar a população e aumentar as excludentes de ilicitude certamente não fazem parte do melhor receituário. O ônus de apontar caminhos para minimizar o problema pertence aos governantes, afinal foram eleitos para isso, e nosso dever é permanecermos atentos e críticos, sempre buscando perceber até que ponto decisões aparentemente abstratas podem influenciar nosso dia a dia.
Hoilton Moreira Oficial de Justiça desde 2000, trabalha na Comarca de Porto Alegre desde 2007. Já trabalhou nas comarcas de Alegrete e São Leopoldo.
Helena Veiga Oficiala de Justiça desde 2012, trabalha na Comarca de Torres desde a nomeação.