Histórias de Oficialas de Justiça – Eveline Monteiro

Lidando com as nossas dores, as agruras do trabalho no interior e as dores do(s) outro(os)

Oficiala de Justiça – Comarca de São Marcos

Eram meados de março do ano de 2017, na comarca de Encruzilhada do Sul, por volta das 20h, quando recebi a ligação do Fórum para cumprir, em regime de plantão, um Mandado de Busca e Apreensão de um bebê (tinha menos de 01 mês e seria tirado da mãe e entregue aos avós paternos). Gelei, primeiro, porque este tipo de mandado que envolve criança, família, sempre acaba abalando nosso psicológico (e eu era oficiala há apenas 01 ano e 05 meses); segundo, estava vivenciando na pele um processo dolorido de divórcio e naquela mesma semana havia chegado de Porto Alegre com todos os objetos pessoais de meu caçula (07 anos na época), que veio morar comigo (o único que quis, as gurias não queriam sair da capital, não havia recursos na minha cidade, uma já estava na faculdade, enfim…) e seu pai não estava muito contente com a situação; e terceiro, a ordem judicial seria cumprida em outra cidadezinha jurisdicionada que distava 60 km de estrada de chão (ruim, esburacada, deserta…), a qual eu teria de ir sozinha e encontrar a Brigada Militar e o Conselho Tutelar de lá.

Deixei meu filhote, avisei a vizinha, pedi que desse uma olhada nele por mim, peguei meu carro e foram longos 90 min até chegar à cidadezinha, momento de turbilhão de pensamentos: “vou ficar sem sinal de celular, e se eu me acidentar quem vai cuidar do meu filho? Por que tirar um bebê de sua mãe? Ai Deus, me ajuda, me leva e traz em segurança, que tudo ocorra de forma tranquila, tomara que a mãe se conforme, tomara que os avós sejam boas pessoas…” .

Enquanto algumas lágrimas corriam na face, de repente quase sofro um acidente, lembro que ao frear meio bruscamente numa curva, na descida de um morro, o carro ficou desgovernado por alguns segundos, dançou, dançou até que consegui controlá-lo novamente. Coração acelerado, com mãos trêmulas e suando frio, finalmente cheguei e encontrei os policiais militares, os quais me levaram na viatura (Graças a Deus!) até o Conselho Tutelar. No caminho me narraram que a mãe tinha muitas dificuldades, que já tinha tentado se suicidar se atirando de uma ponte, que tinha outros filhos, que ela e o pai da criança tinham registros de medidas protetivas… e eu só ouvindo, tentando organizar meus pensamentos e me reestruturar emocionalmente.

hegando ao Conselho, respiro fundo, entro e me deparo com aquela mãe agarrada ao seu bebê com todas as forças do seu coração, apresento-me, leio o teor do mandado, entre gritos e choros, entre negativas, entre falar muito mal dos avós, com toda calma e equilíbrio, explico novamente a situação, reitero que ela não vai perder seu filho, que ela será ouvida na audiência e a juíza então decidirá sobre a guarda… Então ela entrega o bebê para a conselheira e vamos para a segunda etapa, encontrar os avós.

No caminho, era no interior do interior que os avós residiam, fui pensando e se os avós se negassem a ficar com a criança e se fossem pessoas ruins mesmo (porque as conselheiras não tinham certeza, mal conheciam eles), nem ligar para a juíza daria, celular não funcionava… Já me ocorria de, no pior, levar a criança até Encruzilhada para a Casa de Passagem. Chegando ao local, graças a Deus, os avós aparentavam ser pessoas decentes, conversei em sigilo com a neta de uns 10 anos, que residia com eles, a qual me disse ser muito bem cuidada, mostrou o quarto, os brinquedos… a casa era simples, bem humilde, no meio de uma plantação de fumo, mas limpinha e acolhedora.

Saí dali com um certo alívio, a consciência tranquila do dever cumprido e me deparei com aquele céu tão estrelado, tão lindo, numa noite tão escura… a beleza do céu, aquelas estrelas todas me iluminaram a alma e eu fui leve para casa na certeza de chegar e abraçar meu filho. No dia seguinte, entro no saguão do Fórum, estava lotado por causa das audiências, vou caminhando e escuto uma voz e uma pessoa se dirigindo a mim: “Doutora, muito obrigada, a senhora tinha razão, minha bebê tá bem cuidada com os avós”… Eu olho para aquela mãe, dou um sorriso e respiro aliviada mais uma vez. Narrei essa história para enfatizar a força, a coragem, a autoridade, o jogo de cintura… que temos que ter para que a lei seja cumprida por nós, oficialas, que somos a linha de frente do judiciário e, apesar de tudo, somos mães, esposas, ex-esposas, irmãs, filhas, amigas, humanas… enfim, MULHERES.

 


Esse texto faz parte da campanha da ABOJERIS “Histórias de Oficialas de Justiça”. Para contar sua história e conhecer todas as demais, clique em no link abaixo. Compartilhe essa ideia e envie sua história!

HISTÓRIAS DE OFICIALAS DE JUSTIÇA

 

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