HISTÓRIAS DE OFICIALAS DE JUSTIÇA – Flavia Suzana Vieira Machado

Oficiala de justiça desde a infância.

Oficiala de Justiça – Comarca de Santiago

Aos nove 9 anos me vi filha de Oficiala de Justiça, à época poucas mulheres tinham essa profissão no RS. Minha mãe foi se conhecer Oficiala (o termo nem existia, nem o corretor do meu computador moderno o conhece, o sublinhar vermelho teima em aparecer) numa cidadezinha há 150 km de Santa Maria, onde morávamos. Lá ela chegou e ficou conhecida como “Dona Maria Polícia” e nós, seus 4 filhos, éramos “os filhos da Maria Policia” (kkk, nos divertíamos); meu pai, por sua vez, o marido da tal (confesso lembrar que ele não se divertia tanto).

Minha mãe era escriturária da viação férrea antes da nomeação, aprendeu a nossa profissão com os colegas, ela não sabia dirigir, quando meu pai não estava (trabalhava fora), se “aventurava” nas diligências de táxi, quando eram  demoradas, e/ou nos confins e/ou  a diligência exigia acompanhamento, ela levava um de nós, filhos, quase sempre eu e meu irmão, os mais velhos (anos 80!). Tudo era muito novo, lembro que ela passava por perrengues, por ser mulher,  inexperiente e cheia de dúvidas, que nunca deixava transparecer. Era forte, estudiosa, esforçada, determinada e nunca se excedia. Tomava cuidado até ao conversar sobre trabalho em casa, cidade muito pequena. As narrativas não tinham nome, eram mescla de absurdos, curiosidades, angústias e comédias.

Lembram das lendas reais: “o fulano está no cemitério, morreu? Não, é o coveiro”, “penhora de um crucifixo marca Inri, e de uma mesa de comer, velha, de quatro pés”?  Pois então! Minha lenda, para dar uma ideia, é a zona do meretrício da pequena cidade: “A pracinha”, eram várias casas numa travessa em U, com um portal escrito “Pracinha” e um a chafariz no meio (lá minha mãe só ia acompanhada, na urgência, com o carro cheio dos filhos, por isso a lembrança). Também lembro dos conselhos para a adolescente que eu era, sempre com exemplos bem vivos.

Uns anos mais tarde outra mulher forte e importante na minha vida, minha madrinha, irmã de minha mãe, passou no concurso. Minha mãe já havia sido transferida, e ela, a madrinha, foi nomeada para a mesma comarca, eram irmãs, amigas, colegas e faziam os roteiros juntas, tomando mate. Trabalhavam quase sempre juntas, num Gol chumbo, de minha mãe (ela já dirigia), outros no Fusca azul da madrinha. Eram os escritórios delas, e também as dores de cabeça (“queixo duro”, carros velhos que estragavam no caminho, furavam pneu, sim, aqueles pneus furavam muito).

Cresci ouvindo as histórias sobre os contratempos com os carros, com a rotina apertada de mães donas de casa e com as diligências, plantões e dia a dia de Oficialas sem zoneamento. Atendendo de tudo, em grandes extensões territoriais, como se viravam? Numa cidade enorme, cheia de zona rural, sem telefone, aplicativos de localização, GPS, dados móveis de celular…  ufa!! Cansei!! Mas elas davam conta, ah, se davam!

Eu não prestava muita atenção, mas vivi muita coisa. Saudosista, hoje, na minha rotina igual ao começo de tudo, mas atualmente com comarca zoneada e com antenas de celular (graças!). Recordo e me arrependo por não ter sido mais ouvinte e detalhista. Olha que quando comecei, em 1999, minha mãe era colega e conselheira, por telefone convencional, há 450km de distância, diligenciava comigo à noite, no desabafo das ordens dos mandados.
Essas duas Oficialas fizeram parte atuante da ABOJERIS, seus nomes estão gravados na entidade. Lutaram muito pela classe, faziam parte da diretoria, apoiavam e participavam na linha de frente, fizeram greve, recrutaram colegas, viajaram em situações precárias. Lembro de uma história de volta para casa de uma assembleia, greve longa, um temporal na estrada, o ônibus emprestado, não tinha limpador de para-brisa, elas pegaram uma linha do tricô e vieram manualmente, se revezando com os viajantes, limpando a chuva para visibilidade do motorista. Aquela greve resultou bons frutos, ao que lembro. Nunca desistiram, aposentaram na luta. Uma delas já partiu precocemente (minha mãe), mas a outra, jovem senhora, forte, quieta, continua na nossa luta com bravura, sempre que a recrutarem.

Eu?? Professora em 1999, nove anos e meio de “carreira”, dois filhos, passei no concurso, sim!!! Fiz a prova e passei, vivia da matemática, minha formação naquele momento, mas larguei tudo porque a “cachaça” viciou. Apaixonei pela profissão, pelos desafios e pela falta de rotina. Por lidar com o novo, todos os dias. Pela adrenalina. Assumi numa comarca pequena/grande, Caçapava do Sul. Uma das minhas primeiras diligências foi numa área invadida pelo MST, área e bens de uma massa falida administrada pelo BB. Passei 45 dias trabalhando muito, arrolando e transportando bens da massa, colhendo a lavoura e descrevendo a situação ao Magistrado, certidões diárias. Foi punk! E se não fossem minhas professoras particulares, teria voltado para casa apavorada, não seria para mim.

Nesse tempo de Caçapava aprendi muito com meus erros e acertos, não tive colegas muito receptivos, mas tive amigos. Iniciei faculdade de direito e fui transferida para Santiago, onde me formei e exerço a profissão há quase 20 anos. Andei por este Rio Grande em projetos e cursos, criei meus filhos, ganhei muitos e muitos colegas, amigos e irmãos dentro de Fóruns e na vida de Oficiala (de serventuários, advogados e partes). Passei por muitos perrengues, emoções, derrotas, vitórias, raivas e aflições, ajudei e fui ajudada, chorei, estendi a mão e me deparei com fatos que nem sei explicar, de tanto que me influenciaram e que criaram quem eu sou na vida e na profissão.
Quem sou? Flavia Suzana Vieira Machado, Oficiala de Justiça, filha, sobrinha/afilhada de Oficialas de Justiça, mulher, esposa, mãe, quase 22 anos nos Fóruns da vida, aprendendo e lutando por dignidade, reconhecimento e futuro. Contem comigo!

 


Esse texto faz parte da campanha da ABOJERIS “Histórias de Oficialas de Justiça”. Para contar sua história e conhecer todas as demais, clique em no link abaixo. Compartilhe essa ideia e envie sua história!

HISTÓRIAS DE OFICIALAS DE JUSTIÇA

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